Finalmente chegamos à quarta e última parte do artigo escrito pela leitora Carmem Toledo, discutindo a amizade presente nos álbuns de Tintim à luz da Filosofia. Confira as partes anteriores aqui, e boa leitura!
Os melhores amigos de Tintim: a amizade como arma e escudo
O leitor percebeu que [até aqui] não foram mencionados outros personagens, como Dupond e Dupont, Professor Girassol, Bianca Castafiore e os vilões. Nossas atenções devem se voltar aos dois melhores amigos de Tintim, aqueles que mais estão presentes em sua vida: Milu, com sua inocência de animal irracional, trabalha com o instinto, auxiliando seu dono em todos os momentos, como já foi dito anteriormente. Capitão Haddock é a manifestação dos impulsos emocionais ditados pelo momento. Tintim é o raciocínio lógico, a ética em exercício. O encontro proporcionado pela amizade dos três representa a formação do herói, a totalidade da força, o poder possível reunido em três seres finitos e comuns.Como decidi “me aventurar” e recorrer à Filosofia para explicar a ideia de amizade, acho justo citar alguns filósofos célebres para reforçar sua relação com os valores adotados em sociedade e refletidos nas obras artísticas e literárias. Não pretendo forçar ninguém a enxergar “As aventuras de Tintim” como uma obra filosófica! Desejo apenas fazer com que os admiradores de Tintim percebam o quanto e há quanto tempo a necessidade de companheirismo é pensada – antes mesmo que os tataravós de Sir Francis Haddock viessem a existir!
Para início de conversa, Cícero, nos tempos antigos, foi um dos principais filósofos a tratar da amizade, afirmando que esta é própria do ser humano e somente se pode encontrar entre os bons. Escrevia ele:
“Eu só posso aconselhar-vos a que a coloqueis sobre todas as conveniências da vida; porque nenhuma coisa tão conforme à natureza, nem tão a propósito para os casos favoráveis ou adversos. Mas em primeiro lugar sou de parecer que não pode haver amizade senão entre homens de bem”¹A amizade, portanto, segue as leis da natureza e se faz presente nos momentos bons e maus. De fato, não é somente durante os perigos que Tintim se vê amparado pelos amigos, mas também nos momentos de descanso e de comemoração, como pode ser visto no final de “O tesouro de Rackham, o Terrível”, quando está com Professor Girassol no evento promovido por Capitão Haddock intitulado “O Salão do Mar”. Como bem diz a fala do Capitão, parafraseando Shakespeare, “tudo bem quando acaba bem”.
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"O Tesouro de Rackham, o Terrível", página 62. |
Em outras palavras, a filosofia apresenta o pensamento de que a natureza, com sua perfeição, fez com que os homens precisassem uns dos outros, independente das circunstâncias. Também é possível explicar isso recorrendo às palavras do filósofo Étienne De La Boétie:
“... a natureza, ministra de Deus e governante dos homens, fez-nos todos da mesma forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para que entreconhecêssemos todos como companheiros, ou melhor, como irmãos. E se, fazendo as partilhas dos presentes que ela nos dava, cedeu alguma vantagem de seu bem ao corpo ou no espírito, a uns mais que aos outros, (...) é de se crer que, atribuindo assim as partes maiores a uns, aos outros as menores, queria fazer lugar ao afeto fraternal para que ele tivesse onde ser empregado, tendo uns o poderio de dar ajuda, os outros necessidade de recebê-la.”²Assim sendo, a amizade é o elo que reúne esses três elementos essenciais que compõem o heroísmo: o instinto a ser seguido, o impulso vigoroso e a atividade refletida. Os amigos se completam. Esta é a arma e o escudo de Tintim. Não são necessários superpoderes, fórmulas mágicas, transformações irreais, imortalidade ou força bruta. A amizade ajuda Tintim a superar as dificuldades, sem se distanciar de sua essência puramente humana. Ela é o poder que faz com que o herói transcenda a dor, sem desejar a infinitude dos super-heróis irreais. Desta forma, aceita seus limites humanos e se distancia da miséria daquele que, desprezando sua humanidade, tenta se assemelhar aos deuses – o que o tornaria desfigurado e vulnerável a servir às forças malignas que se aproveitam da fraqueza moral da potência sem limites, tão duvidosa para o próprio super-herói, que o torna escravo da inconstância de sua identidade. Para confirmar essa tese, é justo citar, mais uma vez, La Boétie:
“E de resto, se essa boa mãe [a natureza] deu-nos a todos a terra inteira por morada, alojou-nos todos na mesma casa, figurou-nos todos no mesmo padrão, para que cada um pudesse mirar-se e quase reconhecer um no outro; (...) e se tratou por todos os meios de estreitar e apertar tão forte o nó de nossa aliança e sociedade; se em todas as coisas mostrou que ela não queria tanto fazer-nos todos unidos mas todos uns – não se deve duvidar de que sejamos todos naturalmente livres, pois somos todos companheiros; e não pode cair no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto algum em servidão, tendo-nos posto todos em companhia.”³Tal é a causa do vigor e da incessante esperança que sempre está na base de todas as aventuras do herói belga: Tintim é livre, pois é uma criatura da natureza, um ser comum, com qualidades e fraquezas, que possui companheiros que o complementam e fortalecem. Segundo o pensamento aristotélico, Tintim é feliz uma vez que, sem amizade, ninguém é feliz. São as diferenças existentes entre ele e seus amigos que os fazem tão semelhantes e virtuosos.
“A amizade também ajuda os jovens a afastar-se do erro, e aos mais velhos, atendendo-lhes às necessidades e suprindo as atividades que declinam por efeito dos anos. Aos que estão no vigor da idade ela estimula à prática de nobres ações, pois na companhia de amigos — 'dois que andam juntos' — os homens são mais capazes tanto de agir como de pensar.”⁴Nota-se a riqueza de uma “simples HQ” pelos valores transmitidos na base da construção de sua trama. Tintim, mais que um repórter aventureiro, é a cristalização dos pensamentos mais profundos daqueles que viveram muito antes de seu criador; o exemplo lúdico da ciência que questiona o mundo e os homens; a prova de que o maior ingrediente secreto para a criação de um herói está ao alcance de todos os mortais.
Carmem Toledo
Fã de Tintim há 20 anos e, como ele, sedenta de boas histórias
1. CÍCERO, Diálogo sobre a Amizade, Cap. V, p. 27
2. LA BOÉTIE, Discurso da servidão voluntária, p. 17
3. Idem, ibidem.
4. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, p. 170
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